Por Rafaella Britto -
Divórcio, sexo, aborto, maternidade, prostituição, violência doméstica: há 40 anos, temas como estes seriam impensáveis na televisão brasileira, que privilegiava as novelas românticas açucaradas e os enlatados americanos. Em 1979, o cineasta Daniel Filho mudaria para sempre os rumos da teledramaturgia nacional e (por que não?) mundial: a série Malu Mulher, estrelada por Regina Duarte, abalou o conservadorismo ao expor a realidade da nova mulher brasileira, livre, independente e dona de si.
Divórcio, sexo, aborto, maternidade, prostituição, violência doméstica: há 40 anos, temas como estes seriam impensáveis na televisão brasileira, que privilegiava as novelas românticas açucaradas e os enlatados americanos. Em 1979, o cineasta Daniel Filho mudaria para sempre os rumos da teledramaturgia nacional e (por que não?) mundial: a série Malu Mulher, estrelada por Regina Duarte, abalou o conservadorismo ao expor a realidade da nova mulher brasileira, livre, independente e dona de si.
Regina Duarte como a socióloga Maria Lúcia (Malu) em "Malu Mulher" (Foto: Divulgação/Globo) |
O Brasil, sob o governo do General João Baptista Figueiredo, considerado “o presidente da abertura”, vivia os últimos anos do regime militar. Em 13 de outubro de 1978, a Emenda Constitucional nº 11 revogou o AI-5. Em junho de 1979, Figueiredo assinou o projeto de anistia que seria enviado para a aprovação do Congresso. A Anistia, contudo, não beneficiava os considerados terroristas e não devolvia aos militares e funcionários cassados suas patentes e cargos perdidos. Em novembro do mesmo ano, a reforma partidária extinguiu o bipartidarismo, o que possibilitou a formação de novos partidos políticos. Nesta época, foram fundados o PSD (Partido Social Democrático), PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) e PT (Partido dos Trabalhadores).
Passeata pela Anistia em 1978 (Foto: Reprodução) |
A partir dos anos 1970, o feminismo, influenciado pelo pensamento de escritoras como Betty Friedan, Gloria Steinem e Germaine Greer, tornou-se pauta de discussão nos âmbitos acadêmicos. Em 1977, uma CPI foi instaurada para investigar a situação da mulher no mercado de trabalho. Descobriu-se, entre outros crimes, a esterilização forçada de mulheres nas regiões pobres, a desigualdade salarial entre os sexos e a demissão sumária de funcionárias grávidas em empresas. Em seu disco de estreia, lançado em 1979, Ângela Rô Rô cantava a emancipação feminina em faixas como “Agito e Uso”: “Sou uma moça sem recato/Desacato a autoridade e me dou mal/Sou o que resta da cidade/Respirando liberdade por igual”.
Regina Duarte como Malu (Foto: Divulgação/Globo) |
Em meio a esse cenário, a TV Globo estreava Malu Mulher, que durou menos de dois anos no ar, mas se tornou um marco das séries brasileiras: em Malu Mulher, acompanhamos o cotidiano de Malu (Regina Duarte), uma socióloga paulistana recém-desquitada do marido (Dennis Carvalho) que precisa lidar com os desafios de criar a filha adolescente, Elisa (Narjara Turetta), e viver em uma sociedade repleta de dogmas, machismos e preconceitos.
Regina Duarte como a socióloga Malu em "Malu Mulher" (Foto: Divulgação/Globo) |
A ideia de Malu Mulher foi inspirada no filme An Unmarried Woman (no Brasil, Uma Mulher Descasada), de 1978, estrelado por Jill Clayburgh e Alan Bates. Na comédia de Paul Mazursky, indicada a três categorias do Oscar, uma mulher da alta-classe de Manhattan decide viver sua vida e sua sexualidade após ser trocada pelo marido por uma moça mais jovem.
A intenção de Daniel Filho era falar da liberdade feminina e das dificuldades enfrentadas por uma mulher separada. As primeiras reuniões para a criação da série ocorreram na casa do próprio Daniel, e estiveram presentes Regina Duarte, a socióloga Ruth Cardoso e a futura equipe de roteiro e produção. Inicialmente, Daniel Filho apresentou o seriado num formato semelhante aos sitcomsamericanos, que foi rejeitado pela Globo. Decidiu-se, então, que a proposta inicial – uma série com apelo dramático e engajamento social – era melhor.
Narjara Turetta e Regina Duarte em "Malu Mulher" (Foto: Divulgação/Globo) |
Por sugestão de Ruth Cardoso, Cristina Médicis, encarregada da pesquisa para o seriado, conversou com jovens estudantes de sociologia da UNICAMP para colher informações que pudessem compor o perfil de Malu. O nome Malu, aliás, foi sugestão da própria Regina Duarte, em homenagem a primeira personagem que interpretou na televisão, na novela A Deusa Vencida (1965).
Assim nasceu Malu Mulher, que transformou Regina Duarte em musa feminista e rompeu definitivamente com sua imagem de “namoradinha do Brasil”. A partir de então, Regina nunca mais interpretou papéis de mocinhas românticas e sofredoras: de Malu seguiram-se personagens como as exageradas Viúva Porcina, em Roque Santeiro (1985), e Maria do Carmo em Rainha da Sucata (1990).
(Foto: Regina Duarte - Namoradinha do Brasil) |
Malu Mulher propõe reflexões acerca de temas como o conflito de gerações, o casamento em crise e a estruturação familiar. O desquite (judicial ou amigável) foi introduzido ao Código Civil Brasileiro em 1916. A sentença determinava a separação dos cônjuges e dos bens materiais, sem, contudo, destruir o vínculo matrimonial. O divórcio foi instituído oficialmente no Brasil somente em 28 de junho de 1977, com a Emenda Constitucional nº 9. A Lei do Divórcio estabeleceu a dissolução da sociedade conjugal e proteção da pessoa e dos filhos. No entanto, a Lei diferenciava-se da de hoje em alguns aspectos: o divórcio indireto (ou divórcio-conversão) só ocorria quando o casal estava separado há três anos, e o divórcio direto, somente após mais de cinco anos de separação. “Em 1977, triplicaram as separações consensuais entre casais”, disse Regina Duarte em entrevista ao Vídeo Show. É válido destacar, também, que o divórcio era admitido somente uma vez.
Em Malu Mulher, a instituição do casamento é posta em xeque: após anos de vida conjugal, Malu e Pedro Henrique percebem que a convivência restringe suas liberdades individuais. Apesar de separados e buscando novos rumos na vida sentimental, os dois são ainda unidos pela responsabilidade de educar Elisa, e nunca deixaram de se amar.
Regina Duarte e Dennis Carvalho em "Malu Mulher" (Foto: Divulgação/Globo) |
Em Malu Mulher, a instituição do casamento é posta em xeque: após anos de vida conjugal, Malu e Pedro Henrique percebem que a convivência restringe suas liberdades individuais. Apesar de separados e buscando novos rumos na vida sentimental, os dois são ainda unidos pela responsabilidade de educar Elisa, e nunca deixaram de se amar.
Embora a Ditadura estivesse em declínio e o AI-5 já tivesse sido revogado, as produções artísticas ainda não estavam livres da censura: um dos episódios de Malu Mulher foi censurado pelo Órgão de Imprensa do Governo Federal. No episódio intitulado “Malu, a Rainha da Boca do Lixo”, Malu é incumbida pelo instituto de pesquisa social onde trabalha a fazer uma pesquisa sobre prostituição. Ela, então, se disfarça de prostituta e vai até uma zona na Rua do Triunfo, no bairro Santa Ifigênia, em São Paulo, onde é presa e levada para a delegacia. O delegado percebe que se trata de uma mulher instruída e teme que ela seja jornalista.
O autor Walther Negrão contou que, na época, comentava-se muito o caso de um delegado que espancava prostitutas, e por esta razão o episódio não pôde ser exibido.
Em 1979, a polêmica apresentadora da TV Bandeirantes, Xênia Bier, declarou à revista Contigo: “Malu traz uma proposta sensacional, mexe com a cabeça das pessoas, arranca as cascas da ferida. É muito boa a colocação dos conflitos de uma mulher que vive só com sua filha, que não sabe se parte para um novo relacionamento afetivo, que se sente insegura e se pergunta qual o caminho certo”. Xênia acrescentou, ainda, que seu medo era que os puritanos acabassem com o programa: “Eu só tenho medo que essa série acabe por problemas de censura. Não estou falando da Censura Federal, o órgão que pode ou não vetar o programa. Falo é da censura do público, aquelas pessoas que acham muito mais fácil desligar a televisão para não enfrentar as propostas colocadas por Malu. Porque ela exige que se tome uma posição.”
Regina Duarte e Dennis Carvalho (Foto: Novelas Clássicas) |
O estrondoso sucesso de Malu Mulher não ficou restrito ao solo brasileiro: a série foi vendida para mais de 50 canais estrangeiros, e conquistou prêmios ao redor do mundo. Em 1979, recebeu o Prêmio Ondas da Sociedade Espanhola de Radiodifusão e da Rádio Barcelona; em 1980, o Prêmio Íris de Melhor Produção Estrangeira nos EUA; no mesmo ano, Regina Duarte recebeu o Troféu APCA de Melhor Atriz, e Narjara Turetta o de Atriz Revelação; em 1981, foi exibido em horário nobre na Suíça, e na Inglaterra, superou em audiência vários programas da BBC; em 1982, foi eleito o melhor programa de TV do ano em Portugal e Grécia. Regina ainda recebeu um prêmio de melhor atriz na Tchecoslováquia.
Dennis Carvalho e Regina Duarte (Foto: Reprodução) |
Em 1983, Malu Mulher foi exibida com sucesso em Cuba, em uma época em que as exportações brasileiras estavam proibidas para a ilha caribenha. Em Cuba, Regina Duarte e Daniel Filho foram recebidos com entusiasmo pelo líder Fidel Castro, admirador confesso da série.
Regina Duarte, a filha Gabriela Duarte e o cineasta Daniel Filho recepcionados em Cuba por Fidel Castro, fã da série "Malu Mulher" (Foto: Acervo de Graziele Moreira) |
A trilha sonora conta com importantes vozes femininas, dentre elas, Elis Regina, Fafá de Belém, Gal Costa, Rita Lee e Joana. A música de abertura “Começar de Novo”, interpretada por Simone, foi composta por Ivan Lins e Vitor Martins especialmente para a série. Para a exibição nos EUA, a canção foi regravada por Barbra Streisand e Sarah Vaughan com o título “The Island”.
Dennis Carvalho e Regina Duarte (Foto: Reprodução) |
E não somente a interpretação de Regina Duarte é digna de aplausos: o galã Dennis Carvalho rouba a cena com sua presença marcante, e Narjara Turetta, como a filha adolescente, é convincente e espontânea, sem se intimidar diante dos grandes talentos à sua volta. Os episódios contam com participações especiais de nomes de peso, como Carlos Zara, Ney Latorraca, Eva Wilma, Dina Sfat, Ângela Leal, Gianfrancesco Guarnieri, Ricardo Petraglia, Marília Pêra, Nelson Xavier, Cristiane Torloni, Cecil Thiré, Mário Lago, Cláudio Marzo, Susana Vieira, Lucélia Santos, e muitos outros.
Regina Duarte e Ney Latorraca em "Malu Mulher" (Foto: Divulgação/Globo) |
Os figurinos de Marília Carneiro, Helena Gastal, Silvia Sangirardi e Sérgio Reis auxiliam na construção da figura da nova mulher brasileira: sem se ater aos modismos “hippies” característicos dos anos 1970 e início de 80, a nova mulher desconstrói a silhueta com peças amplas que desafiam a forma feminina. A caracterização de Malu, com pouca (e às vezes nenhuma) maquiagem, e também seu tipo físico fizeram com que muitas espectadoras se identificassem com a personagem.
O estilo Malu Mulher (Foto: Reprodução) |
Malu Mulher foi exibida de maio de 1979 a dezembro de 1980. Seu primeiro episódio foi reprisado em 1985, em comemoração aos 20 anos da TV Globo. Em março de 1995, outros episódios foram reprisados no Festival 30 anos. Recentemente, a série foi reexibida pelo Canal Viva e, de seus 76 episódios, 14 encontram-se disponíveis no YouTube. A Loja Globo disponibiliza 10 episódios para compra e download.
Dennis Carvalho e Regina Duarte (Foto: Divulgação/Globo) |
Malu é obstinada. Destemida, peita os homens, as mulheres, e quem quer que esteja tentando tolher seus passos na busca pela realização pessoal. É inteligente, diz coisas inesperadas nos momentos oportunos. Mas não é uma supermulher: Malu é sensível ao sofrimento alheio. Ela chora e se emociona. E também quer sentir prazer. Quer ser amada, compreendida e respeitada por suas vontades e escolhas. Ela se engana, sente medos, fraquezas e inseguranças, é cheia de conflitos e contradições humanas. Malu é, como todas nós, uma mulher.
Foto de abertura: Divulgação/Globo
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